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DSC02173A O Relógio da Sé (Crônica de João Nogueira, escrita em 30 de dezembro de 1932)

Em verdade faz pena ver desregulado e incerto esse relógio antigo e talvez o melhor de Fortaleza. Primitivamente, era o regulador da cidade, espécie de coração da aldeia da pequenina e tranquila Fortaleza de então; mas hoje, que a cidade cresceu tanto, somente a reduzida parte que vive à sombra da Sé e que escuta e se rege por sua amiga que nos fala há setenta e muitos anos.

Esta voz não nos entra de portas adentro como a luz da madrugada que, no dizer do poeta, invadindo a cabana do aldeão, diz-lhe asperamente: levanta-te animal! Tens frio e não tens pão.

Ao contrário disto, aquele som mavioso se nos desperta, se nos manda ao trabalho ou nos convida ao sono ou à oração, lembra, embora vagamente, a voz de uma avozinha solícita, que nos guiasse os passos com um falar antigo e sempre doce.

Atualmente desregulado como anda, faz lembrar essas pessoas de passado glorioso que, tendo sobrevivido a si mesmas, entram a dizer e fazer tolices, enchendo de piedade e de tristeza a seus descendentes e amigos.

São frequentes as diferenças de 15 minutos, dentro de poucas horas, entre esse relógio e outros acertados por ele; e não raramente esses desacordos atingem, subitamente, meia hora, como sucedeu domingo passado, 25 de março.

Isto traz confusão a quem de há muito se rege pela Sé e não pode escutar o toque da Prefeitura. É então que, resignados, repetimos aquele – Deus te salve, relógio que anda atrasado. 

Devemos esta prenda ao Sr. João da Costa e Silva, agricultor na Pacatuba que, para aquisição da mesma, fez doação de um conto de réis à irmandade de São José, assim que ficaram prontas as obras da Matriz, em 1854. Ali falta a pancadinha do relojoeiro, de que fala a conhecida anedota.

A máquina de ferro, todo mundo sabe, é infinitamente grosseira em presença da máquina humana;  entretanto, apresenta sobre esta a grande superioridade de poder sempre se renovar e trabalhar indefinidamente, tudo dependendo da substituição oportuna dos órgãos essenciais ou acessórios.

É sabido que na Inglaterra, devido a bons cuidados, máquinas a vapor do tempo de Watt (1780) ainda estão em perfeito estado de conservação e funcionamento; e que o mesmo acontece com a Rocket, uma das primeiras locomotivas que data de 1829. 


O célebre relógio da Catedral de Estrasburgo, construído em 1352, depois de passar parado vários anos continuou a trabalhar, depois que Schwilgué o reparou e completou, em 1842.
De então até hoje vem marcando regularmente, além de horas, minutos e segundos, os dias da semana e do mês, as fases da lua e vários outros fenômenos astronômicos.  

Nem se diga que alemães e franceses conservam essas máquinas por terem valor histórico ou científico: também zelam com extremo cuidado velhos moinhos, que não se prendem a fato importante algum, bem como castelos em ruínas e outras construções que, por serem muito antigas, são queridas e respeitadas.

Entre nós, povo moderno, americano e adiantado, quase ninguém pensa em conservar velharias, como fazem aqueles atrasados europeus. A Igreja, em todos os tempos, tem sido o conservador por excelência; tem evitado esse espírito de renovamento impensado, que há sido fatal a indivíduos e a povos. 
Devido a isto é que ainda possuímos, funcionando o magnífico relógio, que é a máquina mais antiga do Ceará.  Que tal aconteça, não há que admirar; mas o que contado não se acredita e que ainda esteja em plena atividade a primeira máquina a vapor, que veio a esta terra!
Encomendada pelo Tem. Cel. João Franklin de  Lima para o seu engenho na Munguba, aqui chegou em 1864; e, depois de ter trabalhado ali até 1883, passou a outras mãos e hoje se acha no engenho do Sr. Francisco Anísio de Oliveira Paula, em Maranguape.  Dados os nossos costumes, um caso destes é bem digno de nota…

Nós, que há longos anos nos regulamos pela Sé,  verificaríamos, com prazer, restituído à sua perfeição antiga, o melhor dos nossos cronômetros. Bastaria que o nosso zeloso e estimado vigário da Sé confiasse os reparos carecidos ao Sr. Abílio Silva, esse relojoeiro patrício de reconhecido talento.

Esperamos e desejamos que assim seja, mesmo porque as horas contadas na torre da nosso velha igreja tem a solenidade e a significação que não se lobrigam nos gritos estridentes dos relógios públicos.

Extraído do livro
 Fortaleza Velha, de João Nogueira.  


Velharias Europeias citadas por João Nogueira


129_1119-estrasburgo O Relógio da Sé (Crônica de João Nogueira, escrita em 30 de dezembro de 1932)


O famoso relógio de Estrasburgo foi montado pela primeira vez em 1352 e ficou conhecido como o Relógio dos Três Reis. Tinha lindas figuras e vários detalhes mecânicos tais como um calendário e um astrolábio. A principal imagem era a da Virgem com o Menino Jesus nos braços. Quando recebia a visita dos Reis Magos, a hora era anunciada por um dispositivo que fazia soar um sino. No início do século 14, parou de funcionar.  
Foi restaurado duas vezes, cada vez de forma mais elaborada que a outra. Mas foi inteiramente desmontado em 1547, refeito em outro local dentro da catedral e recebeu o mecanismo que o transformou num dos relógios astronômicos mais perfeitos da Europa

Locomotiva_Rocket O Relógio da Sé (Crônica de João Nogueira, escrita em 30 de dezembro de 1932)
A Rocket é uma das primeiras e mais eficientes locomotivas dentre os diversos modelos criados no início do século XIX. Percorria o trajeto entre Liverpool e Manchester.  Hoje encontra-se no Museu de Londres.

fonte:
oglobo.globo.com/blog do Noblat

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0 comentário

  1. Que crônica maravilhosa,com quase 80 anos! Um relógio desregulado, foi motivo de uma crônica!

    Chamou-me a atenção o nome do dono de engenho de Maranguape: Sr, Francisco Anísio de Oliveira Paula- pai, do humorista Chico Anísio.

    Bela postagem, Fátima!

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