×
Muitos acreditam que o pré-carnaval de Fortaleza é coisa recente, iniciada nos anos 80 com os blocos que desfilam na Praia de Iracema e no Benfica. Ledo engano. Lá pelos anos 60, o Bloco Prova de Fogo já fazia a festa no bairro Otávio Bonfim e adjacências. Quer saber como era? então leia a crônica do Tarcísio Garcia. 
  
🎼🎼🎼🎼🎼🎼🎼🎼🎼🎼🎼🎼🎼🎼🎼

O ENSAIO DA PARADINHA
 (Tarcísio García)
No começo do ano começava a festa. Lá de
casa dava para ouvir o baticum. Os ensaios de janeiro eram um pouco tímidos
devido à falta de entrosamento dos músicos, afastados desde o ano anterior. À
medida que se entendiam na execução, porém, passavam a tocar com mais
desenvoltura, fazendo uma verdadeira algazarra que atraía a atenção dos
moradores de toda a redondeza. Aos primeiros acordes da noite a gente se
entreolhava, largava o que estava fazendo e começava a frenética e animada
preparação para nossa participação no ensaio. Num entra e sai sem fim,
driblávamos a vigilância dos pais e escondíamos no jardim de muro baixo, os
saquinhos de carteira de cigarro com o material garimpado especialmente para a
ocasião.


bloco O Pré-Carnaval dos anos 60

No repertório revezavam-se dois estilos
distintos: marchinha e samba. No primeiro predominava o som dos metais, que se
ouvia a quilômetros. No outro, o samba, onde todo arranjo deixava a música
parecida com “eu vou pra Maracangalha”, do Dorival Caymmi. Só tinha uma
diferença: em todo samba eles botavam uma paradinha, tivesse ou não no
original. Até hoje acho graça sozinho quando ouço uma paradinha. Era assim:
faziam a introdução, cantavam a letra e depois de um caprichado solo de
cornetas, o mestre da bateria dava três apitos e a charanga fazia um breque.
Mais dois apitos e novo breque. Mais dois apitos e novo breque. Por último,
mais dois apitos, novo breque, dessa vez acompanhado de um frivião no repique,
e só então o samba recomeçava.
O cidadão comum, morador de subúrbio não
contava ainda com o feitiço da televisão que o anestesia e imobiliza na
cadeira, de modo que as noites nesta época, eram dedicadas ao convívio social e
à vadiação. Quem não estudava à noite, divertia-se com conversas, flertes e
brincadeiras ao ar livre. Velhos, adultos, adolescentes e crianças, todos
ocupavam democraticamente as beiras de calçadas. Nossa rua tinha uma posição
estratégica que fazia dela um corredor bastante concorrido, ligava a Av. Treze
de Maio à antiga Rua Juvenal Galeno, hoje, Bezerra de Menezes. Além disso,
passava por ali toda sorte de novidades; de prosaicas boiadas a caminho do
matadouro, a tropas de soldados do 23º BC, que iam acampar nas dunas do Papicu.
igreja+das+dores O Pré-Carnaval dos anos 60

Nos meses de maio, junho e outubro, por
ocasião das festas da igreja, os moradores cortavam as flores dos seus jardins
e jogavam os ramalhetes na via pública para enfeitar a passagem das procissões
de Nossa Senhora das Dores, Santo Antônio e São Francisco. Com uma vocação
cultural dessas, nada passava despercebido ao olhar treinado dos moradores. Até
o mais inocente vendedor de algodão doce com sua indefectível lamparina, era
avistado de longe, parado pela freguesia e só liberado quando acabava a última
colherada de açúcar.
Pois bem… nas semanas que antecediam o
carnaval, o Bloco “Prova de Fogo” saía às ruas para corrigir as falhas do
desfile, com destaque para a coreografia da paradinha, que depois de exaustivamente
ensaiada no coração da Praça Tabajara, passava então para a etapa final da
preparação: o ensaio em movimento. Neste propósito, o bloco enchia as noites do
Otávio Bonfim com o mais autêntico e acalorado pré-carnaval. O primeiro sinal
de que o bloco ia sair do Beco dos Pintos e passar na rua, era o volume do som,
que de repente mudava de direção. Estava longe, ficava perto, sumia e voltava,
como se estivesse sendo tangido pelo vento. Ficava mais nítido e ia se
aproximando gradativamente até alguém na calçada anunciar sua visualização e a
dúvida se transformar em certeza, despertando a vontade incontrolável de correr
porta afora.
bloco+prova+de+fogo O Pré-Carnaval dos anos 60

No abre alas, vinha o estandarte preto,
enfeitado de espelhos e ostentando o nome do bloco. Carregada pelo
porta-bandeira, uma caveira de uns três metros, sacudia braços e pernas de
madeira ao sabor das evoluções. Os passistas veteranos seguiam na frente
mostrando o estilo para aos jovens aspirantes a folião. Trajavam calça branca,
blusa vermelha de mangas compridas e um colete preto adornado com lantejoulas
vermelhas. Na cabeça, outro símbolo: um artefato metálico que lembrava ao mesmo
tempo, um elmo das armaduras medievais e um capacete de bombeiro. Envolto numa
nuvem de poeira, iluminado pelos faróis dos carros que pediam passagem, lá
vinha o ensaio da “escola”, solto na buraqueira, tomando conta da rua,
arrastando a multidão.

bloco+prova+de+fogoA O Pré-Carnaval dos anos 60

Da calçada era possível avistar a silhueta
do cortejo se aproximando. Uma piracema de gente acompanhava o desfile,
correndo, pulando e achando graça, somando-se aos que se posicionavam em suas
casas para ver de perto a performance dos passistas. Num crescendo medonho, o
som da charanga cada vez mais alto, invadia todos os espaços, sacolejava a
caixa dos peitos, afrouxava o risador. As cadeiras das calçadas eram recolhidas
para dar passagem, as mulheres casadas corriam para as janelas pra evitar as
mãos bobas, os muros das casas transformavam-se em camarotes cheios de gente de
todas as idades. Crianças de braço eram alçadas às cacundas dos pais, as
maiores fervilhavam de contentamento, os cachorros latiam inutilmente, os
adultos se dividiam: uns torciam a cara achando aquilo uma fuleiragem, outros
se empolgavam com a fanfarra e dançavam na calçada. A atmosfera cheirava a
poeira, sovaco e cloretil, e o Prova de Fogo agora estava passando na porta de
casa.  O povo acompanhava disputando um
lugar perto da orquestra. A rua invadida. A música troando. Não sobrava lugar
para uma pitomba. 

Ao som ensurdecedor dos tambores e das
cornetas, a gente grelava os olhos nos passistas que dançavam de olho grelado
no maestro, que no tempo certo da música levantava a batuta e regia a
paradinha: pi- pi- piiiiiiiii!!! E todo mundo se abaixava: pi- piiii! Davam um
pulinho e mudavam de pose: pi- piii! Mudavam de novo:
  pi- pi- paracatum-paracatum-paracatum…e
saíam saracoteando alegremente movidos por uma força misteriosa que lhes
revigorava o ânimo. Felizes da vida seguiam pela Rua Justiniano de Serpa afora,
indiferentes à nossa provocativa participação: uma chuva de areia provocada
pelos saquinhos que eu e meus irmãos jogávamos sobre o desfile toda vez que os
passistas se abaixavam ensaiando a paradinha.

fotos do arquivo Nirez e Diário do Nordeste
Tarcísio Garcia é cearense de Fortaleza, artista plástico e escritor, autor dos livros
Nó na Língua (1998)
Dicionário do Ceará – as palavras, as expressões e como usá-las – (2000) 
Auto-ajuda na Ruma – neurolinguística cearense (2000)

Compartilhe com alguém

0 comentário

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Autor

mfgprodema@yahoo.com.br

Posts relacionados

Um Cassino em Fortaleza. Quem conheceu?

  Os cassinos são ilegais no Brasil e considerados contravenção penal desde 1946, por decreto assinado pelo presidente Eurico Gaspar Dutra, que...

Leia tudo

Tipos de Rua da Fortaleza de Outrora

Na Fortaleza de antigamente sempre eram encontrados alguns tipos de ruas, pessoas geralmente desprovidas de recursos e cuidados, sem suporte familiar, alguns...

Leia tudo

Paula Ney o poeta de Fortaleza

  Paula Ney foi aluno do Liceu e do Seminário da Prainha. Mas nunca gostou de estudar, era um aluno rebelde. Enquanto...

Leia tudo