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Na Fortaleza de antigamente sempre eram encontrados alguns
tipos de ruas, pessoas geralmente desprovidas de recursos e cuidados, sem suporte familiar, alguns
viciados em bebidas alcoólicas, outros simplesmente abandonados à própria
sorte, que apresentavam sintomas de deficiências mentais. 

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Um dos mais conhecidos era o Antônio Galo Chinês, que
perseguia e mostrava grande agressividade, quando os moleques, para irritá-lo,
imitavam o canto de galo. A perseguição era certa, e munido de um pedaço de
pau, o pobre do mendigo muitas vezes conseguia se vingar do autor da ofensa.
Mas o Galo Chinês não estava sozinho, havia muitos outros: Papai-abre-o-olho; Mocó-Tinindo,
Sabão-mole; Romão; Casaca-de- Urubu; Palheta.  

Não havia esgotos ou fossas, os despejos domésticos ficavam
acumulados durante semanas, em barris especiais, de forma cônica, chamados de
quimoas, ou cambrones, que eram retirados das casas e lançados ao mar pelo
Romão e pelo Sabão-Mole. O Romão era um antigo escravo, brutalizado pela
miséria. Imundo, andava meio curvado, apoiado numa bengala improvisada,
rosnando palavrões por qualquer motivo. Sustenta-se de cachaça, come vísceras
cruas que lhe dão na feira, misturadas com farinha. Quando pega no sono, em
qualquer vão de porta, a mulher e as filhas, três negras igualmente miseráveis,
que o seguem à distância, vasculham seus bolsos atrás das moedas que sobraram
da aguardente.

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Uma tarde ia o Romão com sua carga mau cheirosa, pela calçada
da Santa Casa, rumo à rampa do gasômetro que leva à praia. De repente, o
apodrecido fundo do barril de imundície cede e afunda enterrando-lhe a cabeça
até os ombros. O infeliz braceja como um cego, enquanto toda a gente ao redor,
foge sem coragem de socorrê-lo. As irmãs de caridade da Santa Casa, mandam os
jardineiros lhe atirarem alguns baldes de água, que o salvam daquela indigna
situação. Pobre do Romão! Quando não conseguiu mais trabalhar, deixaram-no
viver a um canto da Cadeia Pública, onde terminou seus dias.

O concorrente do Romão no asqueroso ofício é o Sabão-Mole, mestiço
alto, cuja face amarelada semelhante ao sabão amolecido na água, deu origem ao
apelido. Andava em companhia de uma mulher bem mais velha do que ele, que
parecia sua sombra. Um dia a mulher o abandonou, e o Sabão-Mole vagava
solitário, procurando trabalho indagando nas portas das casas: – tem limpeza hoje,
freguesa?

Junta-se um bando de moleque atrás dele, gritando:  – Sabão- Mole, cadê a velhinha?  E o rapaz que ninguém sequer sabe seu nome, empunha
furiosamente seu cajado de jucá e grita reprimendas com palavras obscenas. É um
mestre do baixo calão, conhece todo o vocabulário. As famílias retiram-se das
janelas , batendo vidraças e venezianas. As vezes a polícia é chamada, mas ao invés
de reprimir os agressores que o provocam, levam o Sabão-Mole aos empurrões e o
trancafiam no xadrez por algumas horas. Quando atravessa a Praça do Ferreira,
então um vasto areal emoldurado de árvores antigas, com um cacimbão de pedra de
Lisboa ao meio e um café ou quiosque de madeira a cada canto, Padre Macaíba,
sacerdote brincalhão, emboscado a um canto da Farmácia Pasteur, disfarçando a
voz, 
faz a pergunta que
tira o Sabão-Mole do sério – Sabão Mole, cadê a velhinha? – “estou reconhecendo
essa voz… é do Padre Macaíba… olhe seu padre, só não digo que está na **##**@##
, porque o senhor é padre. Senão, diria…”

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O Casaca-de-urubu é um cabra com sangue nos olhos, valentão,
contínuo do Tribunal de Relação, cobrador terrível de contas perdidas e
vendedor de latas de goiabadas nas horas vagas. Veste os fraques usados que lhe
dão os desembargadores, daí seu apelido. Epiléptico e perigoso, anda sempre
gesticulando, murmurando coisas desconexas sobre os maus pagadores e doces de
goiaba. A molecada grita de longe, precavidamente: – Casaca de Urubu! Bu! Bu!.
Ele esperneia, atira pedras, dá socos em si próprio com toda a força; no auge
da fúria, vem o ataque epilético, cai no chão, espumando, se machucando, às
vezes sangrando.

O Palheta é alto, esquelético, de ombros levantados, e andar
vagaroso. Usa um chapéu de palha sobre a testa, chupando um eterno cigarro
apagado. Muito calmo, faz ponto pelas esquinas mais frequentadas do velho
centro. Vive de dar calotes, de aplicar golpes, de iludir a boa-fé dos que
param para ouvi-lo. Conta misérias, vende joguinhos, cartões de rifas falsas, ingressos
de teatro sem valor e bilhetes corridos de loteria.

 – Palheta! Gritam os
moleques e acrescentam uma rima obscena; não dá escândalo, finge que não é com
ele. Muda de pouso muito sério, muito digno. Mas vai resmungando impropérios e
proferindo todo um repertório de palavrões e obscenidades.

O Mocó-Tinindo mora numa casinha de taipa, à sombra de uma
tamarineira no alto de um barranco, além do Benfica, na estrada da Parangaba. Ao
tempo da festa de Bom Jesus, padroeiro da antiga Arronches, os bondes andam
repletos de moças ou com os estribos cheios de rapazes. E estes por pilhéria,
gritam quando passam pela casa, o apelido odiado: Mocó-tinindo! Ele surge à janela,
faz gestos indecentes, e os xingamentos sobram para todos que estão no bonde. As
moças ficam envergonhadas. Os rapazes morrem de rir.

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O Papai-abre-o-olho é vítima de troça e fica tomado de fúria quando
lhe gritam a alcunha, que responde com xingamentos e berros hediondos. Não se
sabe a origem do apelido.

Um poeta dizia que a falta de piedade dos meninos por estes
infelizes é um tanto inconsciente. Falta-lhes a educação cristã, a única capaz
de imprimir às almas em formação, o sentimento de verdadeira caridade, que
muita gente pensa que consiste em tirar uma moeda do bolso e dar uma esmola. Essas
pobres criaturas, vítimas da pobreza, do abandono, do desdém e do desprezo, há
muito repousam em paz, lá onde não ouvem mais os escárnios que tanto os faziam
sofrer.


Extraído do livro “Coração de Menino” /Gustavo
Barroso/Livraria José Olympio/Rio de Janeiro/1939. Post Publicação Fortaleza em
Fotos/Imagens postais antigos e Arquivo Nirez. 

    

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mfgprodema@yahoo.com.br