quarta-feira, 6 de agosto de 2025

Padre Quinderé

Padre Quinderé 
 (imagem do blog As Trilhas da Vida)

Padre Quinderé é uma figura lendária. Falecido em 1960, ainda vive nas memórias da cidade, graças à maneira cativante de externar-se, de comunicar-se com todo mundo, seus gracejos oportunos e o seu invencível repentismo. Estava sempre bem-humorado e marcou época nas funções que ocupou, seja como religioso, jornalista e professor.

Como professor do Liceu do Ceará, fazia o gênero linha dura, ameaçando céus e terras para o aluno que não aprendesse os rudimentos da língua latina. O colégio realizava quatro provas escritas de avaliação por ano, e antes de cada uma, semblante fechado, o mestre anunciava: “é agora cambada, que chegou a hora da onça beber água. Quem prestou atenção, quem estudou, quem vai se dar bem, quem malandrou, entra no zero, zerorum...e aquele que eu apanhar pescando, boto pra fora no mesmo instante”


Prédio onde funcionava o Liceu do Ceará, na Praça dos Voluntários
(imagem Arquivo Nirez) 

Sentado na cadeira de professor, vez por outra levantava-se, dava uma volta na sala de aula, esmiuçava cada um dos alunos em busca de pesca. De repente, faltando uns 10 a 15 minutos para terminar o horário da prova, ele avisava: “olhem, vou até a cantina tomar um chá. Quero comportamento exemplar, se eu souber que alguém pescou já sabem, o zero vai cair sem piedade, em cima de vocês”

E se retirava estrategicamente, convencido de que era inútil seu esforço de conscientizar aquelas crianças da importância do ensino do Latim, para uma melhor compreensão do Português, do Francês, do Espanhol, enfim, de todas as línguas modernas que direta ou indiretamente, nasceram do idioma espalhado no mundo antigo pelo Império Romano.

Com esse sistema, nunca reprovou ninguém, em compensação, o estudo do Latim ficou para depois... ou para nunca. Monsenhor Quinderé patrimônio moral e cultural do Ceará, escritor e jornalista, ganhou fama também por sua espirituosidade. Gostava de contar anedotas, fazia rir sem ser ofensivo.

E deixou em seus alunos a lembrança do professor devotado e severo, ao mesmo tempo generoso, porque cedo entendeu que o estudo do latim positivamente era uma carga pesada demais que o currículo impunha aos alunos secundaristas.

Contam que certa vez o padre recebeu um grupo de alunos e alunas do Liceu que o convidaram a um piquenique comemorativo do término do curso. Argumentaram que a presença dele daria mais destaque ao evento. Padre Quinderé agradeceu, mas respondeu “não posso ir, mas peço-lhes, porém, uma coisa: me tragam depois os meninos nascidos desse piquenique para eu  batizá-los.” 

Amigo da família do Comendador Nogueira Acióli, Presidente do Estado durante muitos anos, Monsenhor Quinderé recebeu de "presente" uma cadeira de deputado Estadual. Eleito, cumpriu dois mandatos, onde ele próprio afirmava: "Fui deputado, sem conhecer um eleitor, e jamais qualquer deles me procurou para tratar de interesses pessoais. Os chefes é que defendiam junto ao governo as pretensões dos seus correligionários''.

Simpático e acessível, frequentava as residências ricas ou pobres, como pessoa de casa, e jamais alguém duvidou da lisura dos seus procedimentos morais e das suas virtudes de clérigo. Certa vez, para fazer gracejo, perguntaram-lhe se ele era um sacerdote sério, e a resposta foi: "sério eu sou, não sou é sisudo".

Quando faleceu, no dia 26 de agosto de 1960, Monsenhor Quinderé já estava privado da visão há alguns anos e o seu passamento resultou de um insidioso câncer. Foram suas últimas palavras: "A batalha está terminada. Encontrei o caminho do céu". Morreu aos 78 anos, como sempre viveu: em paz com sua consciência. Está sepultado na cripta da Catedral Metropolitana de Fortaleza.

Capela do Cristo Ressuscitado na Cripta da Catedral
(imagem Fortaleza em Fotos 2012) 

José Alves Quinderé nasceu em Maranguape, filho de João Gualberto Quinderé e Josefina Pinheiro Muniz, no primeiro dia do ano de 1882. Ingressou no Seminário de Fortaleza em 1904, com estudos custeados pela irmã Gagnet, madre superiora do Colégio da Imaculada Conceição, que admirava a sua inteligência e as suas virtudes. Depois da ordenação passou a trabalhar no Palácio Episcopal, até que em 1910 foi nomeado professor de latim do Liceu do Ceará. Três anos depois, fundou o Colégio Cearense, que em 1916 passou a ser dirigido pelos irmãos Maristas. Na hierarquia da igreja atuou como Secretário-Geral do bispo Dom Joaquim José Vieira. Em 1920, foi distinguido com o título de Cônego, tornando-se Monsenhor em 1929. Exerceu o mandato de deputado estadual em duas legislaturas e foi Vice-Presidente da Assembleia. Suas atividades literárias começaram em 1939, quando escreveu um trabalho intitulado "Subsídio para a História Eclesiástica do Ceará", inserido numa edição de "O Ceará".

Monsenhor José Quinderé publicou, além de "Subsídio Para a História Eclesiástica do Ceará", o "Ano Litúrgico", "Sinal Sensível", (Editora Agir-Rio), "Palavra de Vida Eterna"(Editora Vozes, de Petrópolis), "A Mais Antiga Constituição" (Editora Beneditina, Salvador), "A Vida de D. Joaquim José Vieira- 29 Bispo do Ceará" (Editora Instituto do Ceará), "Vida de Santa Filomena" (Editora A. Batista Fontenele) e, finalmente, "Reminiscências".

 

Fontes: O Liceu e o Bonde/Blanchard Girão/Editora ABC/Fortaleza, 1997

Padre Quinderé, por Raimundo Girão. Disponível em https://academiacearensedeletras.org.br/revista/revistas/1982/ACL_1982_22_O_Padre_Quindere_Raimundo_Girao.pdf 



segunda-feira, 28 de julho de 2025

O Jardim Zoológico da Cidade da Criança

 


Em 1946 Onélio Porto mantinha um terreno particular, cedido pelo Colégio Cearense da Ordem dos Irmãos Maristas. Nesse local Onélio criava pássaros e outros animais. Em 1951, o vereador Lúcio Magalhães propôs a criação de um jardim zoológico, na área do Parque da Liberdade, para onde seriam transferidos os animais de Onélio Porto, juntamente com outros criados pelo sargento do Exército, conhecido por Prata.

Eram ao todo 565 animais, de diversas espécies, que ficariam sob a responsabilidade da Secretaria de Educação e Cultura do Município, e aos cuidados de Onélio Porto. O mini zoológico permaneceu por quase duas décadas na Cidade da Criança sempre com muitas dificuldades, com instalações inadequadas à maioria dos bichos e água sem tratamento e alimentação escassa. Também tiveram alguns problemas devido a interação entre animais e crianças do Jardim de Infância. Então Onélio Porto retirou seus animais como forma de protesto. A partir de 1979 o zoológico foi transferido para o Horto Florestal numa área do Parque Ecológico do Passaré.




Uma crônica de Blanchard Girão relata um incidente havido com um amigo quando o zoológico ainda estava no Parque da Liberdade.

O amigo ficou até altas horas bebericando com outros notívagos contumazes no bar localizado no Passeio Público, na Avenida Caio Prado. Encerrada a noitada etílica, os antigos companheiros de bancos da faculdade, tomaram cada qual o seu rumo. O amigo do cronista dirigiu-se à Praça do Ferreira, ponto habitual do local de encerramento das noitadas do bloco dos que ficavam na praça até muito depois da meia-noite e ponto de partida para os cabarés que funcionavam nas redondezas.

Tomou o rumo da praça, quando à altura da Rua Senador Alencar proximidades da Rua Major Facundo, avistou algo estranho, a poucos metros. Mas estranho ainda, porque na sua visão aquilo era uma onça... e vinha em sua direção. Uma onça em pleno centro da cidade! raciocinou que realmente devia estar muito bêbado, e o bicho vindo em sua direção! Aquilo era grande demais para ser confundido com um cachorro!  

Os efeitos do álcool não tinham lhe tirado todos os sentidos, especialmente o instinto de preservação. Com medo, recostou-se à parede, como a procurar um abrigo salvador. E a onça como se estivesse em seu ambiente, caminhava sem pressa, investigando. De repente, pelo olfato interessou-se por uma grande lata de lixo entreaberta na calçada. Para lá se dirigiu, faminta, à procura de algo que lhe aplacasse a fome.



Foi o chamado instante decisivo. Arrancando as últimas forças das pernas, o amigo fugiu em desabalada carreira em direção à praça. Lá encontrou alguns companheiros de boemia, a quem relatou a sua incrível visão: ninguém o levou a sério. Desacreditado, tonto pela cerveja consumida no bar do Passeio Público, resolveu ir embora, em direção a sua casa na Floriano Peixoto. De longe, ainda ouvia os gritos de gozação dos amigos: “olha a onça, nego véi” “cuidado com a onça”,” eta cachaça da peste, dá até pra ver onça na Praça do Ferreira”

O susto ainda estampado no rosto, o rapaz se depara ao entrar em casa, com a avó, a quem transmite sua fantástica história. E a avó carinhosa foi preparar um café forte e amargo, servido junto com a reprimenda “você andou bebendo de novo, menino! deixe disso!”.  

Assim, desacreditado por todos o nosso boêmio notívago foi dormir; manhã cedo, ainda de ressaca, não tardou em ler nas bancas, as manchetes dos jornais em letras grandes: “Onça foge do Parque e é morta a tiros pelos bombeiros”.  Era a confirmação do episódio para desmoralizar a todos os incrédulos, se um dos seus companheiros que estivera na Praça do Ferreira na noite anterior, não tivesse espalhado um boato pela cidade: a de que o rapaz fora ao Parque da Liberdade, onde ficava o mini zoológico de Onélio Porto, soltar a onça para provar sua história”.

Na verdade, a onça escapara de sua jaula, perambulava pelas ruas centrais, quando esteve a poucos passos de nosso personagem. Horas depois, pôs em polvorosa os moradores do Pirambu, quando acabou abatida a tiros de fuzil pelos soldados do Corpo de Bombeiros.

    

Fontes: 

Caminhando por Fortaleza, Francisco Benedito. 1999

Sessão das Quatro, cenas e atores de um tempo mais feliz, de Blanchard Girão, 1998.

fotos do Parque da Liberdade: IBGE e postais antigos


 

terça-feira, 22 de julho de 2025

A Criação do bairro Pirambu

 

O Pirambu está localizado no litoral oeste da cidade.  No passado, finais do séc. XIX, a região do Pirambu, era uma vasta zona de praia, formada por dunas, areias alvíssimas, algumas lagoas e um ou outro casebre de pescadores, que preferiam habitar a região do Mucuripe ou da Praia de Iracema.




A área começou a ser ocupada a partir de emigrantes que fugiam das secas, que periodicamente assolavam as cidades do interior do Estado,  e das calamidades que as estiagens traziam, fome, miséria, doenças, desemprego. Os governantes ficaram alerta pelos problemas que precisaram enfrentar em estiagens anteriores, decorrentes do aumento súbito da população, carente e faminta, e pensaram numa solução para situações vindouras: Os Campos de Concentração.

Os retirantes da seca de 1932, que chegaram nos trens, foram isolados num dos tais espaços; cerca de 1800 pessoas ficaram no lugar hoje conhecido por Pirambu. Depois que passou o período crítico da seca, muitos voltaram para seu lugar de origem, e muitos ficaram em Fortaleza, no Pirambu. Os que desistiram de voltar construíram barracos, conseguiram trabalho nas fábricas que se instalaram ao longo da Avenida Francisco Sá e na rede ferroviária, nas oficinas do urubu. A vizinhança de poder aquisitivo reduzido, incomodou os ricos moradores do Jacarecanga, que iniciaram busca por novos locais de moradia. 



As dunas foram ocupadas, as lagoas foram aterradas, os moradores se multiplicaram e o Pirambu se firmou como a maior favela de Fortaleza. O lugar não tinha nenhuma urbanização nem contava com infraestrutura, os terrenos tinham preços mais em conta para as famílias de migrantes. Haviam os que em muitas oportunidades os ocupavam clandestinamente, daí o crescimento irregular, com a propagação de lotes de tamanhos irregulares, casas modestas e favelas, becos e ruas estreitas, tortuosas e sem saída, e inexistência de espaços públicos e áreas de lazer. O bairro foi criado em 1932.  

Os ocupantes do Pirambu já contavam em torno de 5 mil pessoas, quando apareceram duas famílias alegando que eram donas da área, os Braga Torres e os Carvalho. Pressionavam os moradores para que desocupassem as terras ou vendessem os terrenos. Sentindo-se ameaçados, os moradores começaram a se organizar, a se reunir. Mas não tinham uma liderança, não queriam interferência política e não chegavam a um acordo sobre o que fazer.

Então convidaram o padre Hélio Campos, que havia pouco tempo tinha se formado capelão da Marinha, e atuava na Igreja de Nossa Senhora dos Navegantes. Corria o ano de 1958, quando descobriram que nem os Braga Torres e nem os Carvalho eram donos da área. E sob a liderança do padre, iniciaram um movimento pela manutenção da posse da terra, pela melhoria das condições sociais e de moradia e contra novas ameaças de expulsão. Por força do decreto nº 1058, de 25 de maio de 1962, que declara tais terras de utilidade pública para execução de plano habitacional em favor dos seus moradores, hoje, os terrenos são considerados de propriedade comunitária.


Com o aumento da ocupação da área, o Pirambu foi dividido em vários bairros, embora a região situada entre o bairro Moura Brasil e a Barra do Ceará continue sendo conhecido como o “Grande Pirambu”. Vários projetos, associações e ONG's atuam na área do Grande Pirambu, na busca de melhorar a qualidade de vida dos moradores, equacionar problemas estruturais e dessa forma, mudar a história daquela região, contada por anos e anos de pobreza, preconceito e exclusão social. De acordo com o IBGE (Censo de 2022), o Pirambu abriga a maior favela do Ceará.   


Consultados: 

https://www.ebc.com.br/especiais-agua/campos-de-concentracao

Verso e reverso do perfil urbano de Fortaleza, de Gisafran Nazareno Mota Jucá. 

Fotos G1/Jornal Diário do Nordeste/IBGE/


segunda-feira, 14 de julho de 2025

Bairro Centro

 Praça do Ferreira
1933 (foto Diário do Nordeste)

2013

A região de Fortaleza que denominamos Centro, é o local mais antigo, onde a cidade surgiu, no rastro da ocupação holandesa e da edificação do forte Schoonenborch, no século XVI. Por muito tempo a cidade se restringiu a área central, chamada inicialmente de Povoado do Forte, depois Vila da Fortaleza de Nossa Senhora da Assunção, nascida ao pé do forte que lhe emprestou o nome, às margens do riacho Pajeú.

A vila se desenvolveu primeiro na região ao redor do forte, que também foi responsável pela construção da primeira igreja, dedicada à Nossa Senhora da Assunção. Depois apareceu o quartel de linha, a Igreja de São José, e assim a cidade ganhou a sua primeira catedral. Junto ao forte ainda foi construído o Passeio Público, a Praça da Sé, a Casa dos Governadores.

Passeio Público

Início do século XX

2013

Depois o Centro começou a se expandir porque construíram uma igreja de escravos num lugar ermo, distante do aglomerado, e resolveram construir um Palácio para a Câmara e que acabou ficando virando sede do Governo naquele local. Mais tarde, chegou à cidade um boticário que virou administrador, e construiu a Praça do Ferreira, que desde então, tornou-se o coração da cidade e inaugurou uma nova centralidade. 

No centro foram construídos as primeiras igrejas, as primeiras praças, os primeiros arranha-céus, os primeiros hotéis, primeiros cinemas, e os primeiros casarões, de propriedades dos potentados sertanejos, que enriqueceram com a exportação de algodão, cera, couro e outros produtos da terra. No centro, o comércio floresceu pelas mãos de estrangeiros e nativos, que inauguraram linhas marítimas que se conectaram com a Europa e trouxeram à Fortaleza ainda provinciana, as maravilhas fabricadas em Londres e Paris.´

ainda estão lá


 

Até pelo fim da década de 70, o Centro era o endereço de tudo quanto era relevante para a cidade: A Assembleia Legislativa, o Governo Estadual e Municipal, O Fórum, o Palácio do Bispo, as Lojas, os Cinemas, os Hotéis, os Bancos e uma infinidade de estabelecimentos e prestadores de serviços que atraiam todo tipo de público. Os logradouros eram bem cuidados e havia transporte coletivo partindo do Centro para toda a cidade.

Mas quando a cidade começou a se expandir, primeiro para o Leste e depois para todos os quadrantes, o Centro foi quem pagou o maior preço, com um esvaziamento acentuado e progressivo, que acontece até os dias atuais. O abandono ficou patente nos inúmeros imóveis vazios, nas ruas esburacadas, nas praças com equipamentos quebrados e pichados, na insegurança das instalações e dos frequentadores, na desordem da ocupação dos espaços, no acúmulo de lixo, e no grande contingente de moradores de rua. De acordo com o Censo de 2022, o Centro conta com 24.096 moradores. Limita-se ao Norte: Oceano Atlântico; ao Sul: Benfica, José Bonifácio e Joaquim Távora; a Leste: Praia de Iracema, Meireles e Aldeota; e a Oeste: Jacarecanga, Otávio Bonfim e Moura Brasil.

por Fátima Garcia

fontes consultadas: IBGE (censo 2022), Prefeitura de Fortaleza

fotos Fortaleza em Fotos 



quinta-feira, 10 de julho de 2025